Resenha expositiva - Diário do Subsolo
Recomendaria esse livro? Depende muito. A leitura de clássicos, na maioria das vezes, exige atenção e repertório por parte de quem está lendo — e este livro é um exemplo vívido dessa condição inexorável de grande parte dos clássicos da literatura. Sobretudo, quando se carece das referências necessárias, "Diário do Subsolo" pode facilmente tornar-se uma leitura desagradável se o leitor não conhecer o contexto em que a obra foi produzida e as intenções mesmas do autor com o texto. Confesso, que logo que comecei a ler quis desistir, meus parcos conhecimentos não foram o suficiente para entender o que eu estava lendo.
A primeira parte das duas que compõem o livro consiste em um ensaio filosófico chamado "O Subsolo" redigida pelo narrador popularmente conhecido como "Homem do Subsolo". Ele se apresenta como um rapaz desagradável, e logo no primeiro parágrafo e ao longo da primeira parte do livro ele apresenta alguns dos seus aforismos doentios e repletos de antíteses e contradições internas — evidenciando um dos seus traços mais marcantes, a personalidade literária do "narrador mentiroso".
Mas, até que ponto esses aforismos são doentios? Eu vos pergunto: tentar eliminar toda a vileza e o caráter, por vezes selvagem, de um homem a partir de uma "lavagem cerebral" utilitarista seria uma ideia socialmente aceitável? E essa — uma das principais críticas que o autor tece na obra — surge na figura de um narrador que seria uma amálgama de ideais que o autor rejeita e procura desconstruir ao longo da narrativa.
Sabemos que o livro é uma grande crítica de Dostoiévski às diversas "virtudes" do "Homem do século XlX", sendo este um homem sem caráter e personalidade, moldado por um mundo que, sem piedade, abandonou a moralidade e abraçou uma racionalidade fria e utilitária, fortemente influenciada pelo ensaio "Que fazer?", de Nikolai Tchernichévski. Portanto, toda essa doutrina do homem do subsolo, que, de primeiro momento, soa doentia e maléfica, não passa de uma crítica do autor, que, por meio de um personagem problemático, pôde escancarar todo o seu descontentamento com a mentalidade da época.
"Diário do Subsolo" é uma obra brilhante com diversas camadas que podem tornar-se quase imperceptíveis ao "Homem do Século XXI" que desconhece a realidade do autor. De maneira alguma acho que isso deveria impedir alguém de encarar o livro — eu precisei, na primeira leitura, de muitas videoaulas e textos de apoio para entender o conjunto de ideias da obra. Todavia, voltando ao ponto que fiz no início da resenha, carecendo de referências prévias, a leitura pode tornar-se muito desagradável também.
Isto posto, a segunda parte da obra, esta, intitulada "A Respeito da Neve Molhada" é notavelmente mais fluída se comparada com a primeira. Após o ensaio filosófico, o Homem do Subsolo apresenta no seu diário uma série de relatos cujo propósito é esclarecer algumas de suas opiniões e mostrar a sua amargura e rancor, dessa vez, nas ruas, confirmando que toda aquela imagem prévia de um homem ruim, inseguro e arrogante é, de fato, como se comporta socialmente.
Ademais, pode-se afirmar que Homem do Subsolo está ao nível de Bentinho, de "Dom Casmurro" no que diz respeito ao caráter de narrador mentiroso. No geral, achei essa segunda parte muito mais palatável que a primeira e fiquei fascinado com a crua exposição das suas histórias, especialmente sua relação com a personagem Liza.
Pretendo agora me afastar um pouco da análise do conteúdo da obra para comentar brevemente sobre a edição, tradução e fazer uma reflexão sobre a escolha de título por parte do tradutor.
Quero iniciar pela escolha do título, repare que na edição da Martin Claret foi escolhido "Diário do Subsolo" e entre tantos títulos que encontramos em diferentes versões do livro como: "Cadernos do Subterrâneo", "Notas do Subsolo" ou "Memórias do Subsolo" — título consagrado pelo tradutor Boris Schnaidermann — a proposta da obra pode tornar-se subjetiva aos olhos do leitor.
O título original em russo, Записки из nopronba (Zapíski iz pódpol'ia), poderia ser traduzido literalmente como "Notas do Subterrâneo". No entanto, seria essa a melhor escolha? Há quem discorde. Parafraseando o professor Ricardo Vassoler: memórias dizem respeito à reminiscência; notas, à dimensão da escrita. Assim, títulos como "Diário" "Notas" ou "Cadernos" talvez não façam pleno jus à natureza do texto, se considerarmos que todos os devaneios e conjecturas do narrador têm uma dimensão profundamente memorialística, elas ecoam e nos atingem em alguma medida ao longo da narrativa
De qualquer maneira, faria sentido escolher esses títulos, afinal, diários, notas ou cadernos revelam não apenas o conteúdo, mas também a forma como essas memórias são estruturadas. Pessoalmente, acho muito difícil decidir um título específico, ao mesmo tempo que o Homem do Subsolo diz que não pretende, com os seus textos, alcançar qualquer leitor. Durante todo o livro ele se refere a um leitor hipotético, reforçando ainda mais as antíteses e a relação paradoxal com suas próprias ideias como nesses trechos:
"Eu nunca terei leitores. Já deixei isso bem claro...
Dois parágrafos depois acrescenta:
"Por exemplo, isso: os senhores poderiam tomar minhas palavras por pretexto e perguntar-me - se você realmente não conta com os leitores, então por que anda fazendo consigo mesmo e, ainda por cima no papel, os pactos de não criar ordem nem sistema, de anotar o que recordar, etc.? Por que se está explicando? Por que se está desculpando?
- Porque sim - respondo eu."
Desse modo, a escolha do título pendula entre a literalidade e a subjetividade. Não posso afirmar, com certeza, se isso deturpa a percepção do leitor sobre a obra — muito embora eu acredite que sim —, mas considero uma discussão pertinente a ser suscitada nesta resenha.
Sobre a tradução e a edição, vou ser breve. A edição que li e utilizei como referência para esta resenha é da editora Martin Claret. Ela é ótima: possui prefácio e notas escritas pelo próprio tradutor, as duas muito competentes — assim como a arte da capa, ainda que, atemporal e minimalista, não sacrifica sua personalidade. Esta edição foi traduzida pelo bielorrusso Oleg Almeida, tradutor altamente experiente na tradução de obras russas, soube conferir leveza à obra, ao mesmo tempo que preservou seu tom sério. Usarei como exemplo para cotejo os memoráveis parágrafos iniciais:
§1- Sou um sujeito doente. Sou um sujeito maldoso. Um cara repulsivo eu sou. Acho que o meu fígado está mal. Aliás, não entendo patavina de minha doença e nem sequer sei o que me dói. Jamais me tratei nem me trato hoje, com todo o respeito pela medicina e pelos doutores. Ainda por cima, ando supersticioso ao extremo, digamos, a ponto de respeitar a medicina. (Sou instruído o suficiente para não ter superstições. mas, ainda assim, tenho-as.)
§2 - Já faz tempo que vivo dessa maneira: uns vinte anos. Agora sou quarentão. Antes eu trabalhava, e agora não trabalho. Era um funcionário maldoso. Era bruto e achava prazer nisso.
Gosto da tradução de Oleg e pretendo, no futuro, ler mais trabalhos seus — apesar de a maioria das minhas edições do autor terem sido traduzidas pelo casal Guerra,
Finalizo esta resenha retomando minhas ideias iniciais: trata-se de uma leitura difícil e exigente, mas que, com o devido preparo, pode ser uma das mais marcantes e primorosas experiências que a literatura pode proporcionar.
Dostoiévski não nos oferece respostas fáceis; ao contrário, nos obriga a encarar o abismo e revelar o que há de mais visceral natureza do ser humano.
Enzo Alegre Nunes, 07/04/2025
Editado em: 22/09/2025
Editado em: 22/09/2025
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